O aborto dos homens




Sobre o aborto dos homens, ninguém fala. Porque há muitas formas de alguém abortar. O esquecimento e a indiferença estão entre elas. Mas para a consciência das massas, isso não é importante. Basta que "a vida não seja ceifada" e todos possam dormir em paz com sua consciência (ou hipocrisia).

Se a criança vai parar na rua ou se pula de orfanato em orfanato, se é maltratada, se ninguém a quer, se vive num lar disfuncional - com isto ninguém se preocupa. Se o pai vai embora na exata hora que sabe que vai ter um filho (o que é muito comum, com ou sem aborto), ninguém sequer levanta a mão para condená-lo por isto. É natural. "Homem é assim", dirão. E assim a mulher será pra sempre responsabilizada por um momento vivido a dois.

Há um machismo latente e naturalizado nas vozes contra o aborto. A discussão fica sempre no lugar comum - porque sim, porque Deus não quer, porque não se pode tirar uma vida. Ainda que esta vida morra a cada dia um pouco - pela falta de amor e de cuidados, pelo abandono, pela pobreza circunstancial, pela ausência de um pouso seguro. Com esta morte lenta, em fogo brando, ninguém tem medo de sujar as mãos. Alguém se mexe no sentido de impedi-la com a mesma energia com que investe na luta contra o aborto? Não. Por que, de novo, é para a mãe que o dedo estará apontado. Neste sentido - e não só -, o machismo vigora sempre que estas vozes e dedos naturalizam a improvável auto-concepção da mulher, quando pactuam com a indiferença do homem que também aborta - e aborta antes. Mas sobre ele não paira qualquer juízo de valor. Está sempre livre para partir. Para o homem, uma noite pode ser resumir numa noite. Para a mulher, a noite se prolonga por toda a vida. Tinha outros planos? Não tem como cuidar do filho sozinha? Não tem emprego? Não tem com quem deixar a criança? Questões menores, mas pelas quais ela terá que responder também, sob pena de novo julgamento. 

O corpo da mulher, segundo a lógica social vigente, não lhe pertence. O discurso já inscreveu este corpo numa realidade, numa ontologia que o escraviza. Romper com este sono letárgico, com este discurso que nega a escolha, o livre-arbítrio, o direito à recusa é luta de uma vida. Ou de várias, ceifadas em nome da "manutenção da ordem e dos bons costumes".



Li o texto do link abaixo, "Se minha mãe tivesse me abortado", e me pus a pensar. Pode ser que as palavras contundentes de Laryssa venham a oxigenar os dizeres e pensares:

"(...) não vem com essa porra de jogar toda a responsabilidade para cima dela [minha mãe], reiterando a ideia de que “mulher tem que se preservar” e blá blá blá. O senso comum não se importa com o aborto dos homens — que, aliás, é extremamente comum. Meu progenitor (genericamente conhecido como “pai”) me abortou e ninguém, NUNCA, foi atrás dele. Ele não sofreu nenhum rechaço, ele não foi responsabilizado, nem ao menos consideraram o abandono dele durante a gravidez um aborto. Só que foi". Laryssa Carvalho, Portal Geledés

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Fonte da imagem 1: http://desacato.info/brasil/feministas-consideram-avanco-conselho-de-medicina-apoiar-direito-ao-aborto/
Fonte da imagem 2: http://mulheresemluta.blogspot.pt/2015/09/rompendo-o-silencio-chega-de-mortes-de.html 

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